Revista da CAASP É conhecida sua convivência com o filósofo político e historiador italiano
Norberto Bobbio. O que o senhor acha dos conceitos de esquerda e direita por ele definidos?
Celso Lafer O Bobbio é um grande pensador do Direito e da política. Um dos grandes
méritos da obra dele é essa vocação interdisciplinar. O Bobbio mesmo diz que poder é um
conceito que tantos juristas quanto cientistas políticos têm em comum, e no entanto eles
tendem a se ignorar no trato de uma questão que é fundamental. E uma das dimensões
fundamentais do poder é em que direção ele deve ser exercido.
O Bobbio participou muito ativamente do debate político italiano no correr da sua vida. Um
dos primeiros debates dele conhecidos foi a polêmica com o Partido Comunista Italiano
sobre o papel da liberdade, que está num grande livro dele chamado “Política e Cultura”,
em que ele fez a defesa da liberdade tal como concebida no Estado Democrático de Direito,
contestando a maneira pouco valorativa do tema da liberdade dado pelos comunistas.
Mostrando muito a amplitude de perspectivas dele e aquilo que ele definia como sendo o
liberal-socialismo, quando houve a queda do muro de Berlin e o fim da União Soviética, ele
resolveu contextualizar a situação e escrever o livro “Direita e Esquerda: Razões e Significados
de uma Distinção Política”, que teve uma enorme repercussão. É um livro claro, como tudo
que o Bobbio escreve, e acessível.
Ele diz que a distinção entre esquerda e direita continua válida. Continua válida porque a
estrela polar da esquerda é a preocupação com a igualdade, e num mundo onde o tema
da desigualdade permanece tão forte e tão vigoroso, é preciso levar em conta que este é
um legado indispensável, e que numa perspectiva ética e numa perspectiva política não é
possível ignorá-lo.
Isso é uma expressão daquilo que ele mesmo definiu como seu liberalismo social. Na
perspectiva do Bobbio, liberalismo significa ampliar as liberdades, inclusive pelo acesso aos
bens materiais necessários para o exercício da liberdade. Esse livro, “Direita e Esquerda”, que
teve um grande destaque, foi contra a maré montante do neoliberalismo e representou uma
tomada de posição muito relevante, na base de que o mercado é um instrumento de grande
eficiência, mas que não resolve os problemas do contrato social e da convivência.
Por que a crise de 2008-2009 não enterrou definitivamente o neoliberalismo?
Eu acho que a crise de 2008-2009 foi muito expressiva, foi a grande crise da globalização
financeira, da desregulamentação, que trazia a noção de que o mercado seria capaz de
autorregular-se – e o mercado não se mostrou capaz de autorregular-se.
Eu sempre tendo a dizer que, em contraste com aquilo que caracterizou o comércio
internacional via OMC (Organização Mundial do Comércio), aquilo que caracterizou o sistema
financeiro internacional, inclusive suas agências reguladoras como o FMI (Fundo Monetário
Internacional), foi uma perspectiva não atenta à dimensão jurídica e à dimensão da
regulamentação.
Houve três tipos de atores: os economistas, que veem as virtudes da economia de expansão
do comércio internacional de bens e serviços; os diplomatas, sempre atentos às realidades
do poder; e os juristas, conscientes de que o mercado não opera no vazio, requer regras e
instituições. Eu creio que esse é um dado importante.
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CELSO LAFER | ENTREVISTA