LITERATURA 60 REVISTA DA CAASP
morre cedo. Até a frase que relata a morte
é abreviada: “piquenique, relâmpago”.
Em férias na Riviera, o garoto Humbert
conhece uma menina por quem se
apaixona, mas o amor não é consumado
- ela morre repentinamente, também.
Segundo o próprio protagonista-narrador,
a partir daí estabelece-se uma busca
maníaca pela ninfeta (termo cunhado por
Nabokov) perdida, a garota entre nove e
12 anos com características sexuais ainda
indiferenciadas, mas já dotada de uma
psique intuitiva e manipuladora. Após
um casamento desastroso, Humbert
emigra para a América e por uma série
de coincidências - recurso muito utilizado
por Nabokov - acaba alugando um quarto
na casa de Charlotte Haze, viúva de classe
média que aspira a cultura e sofisticação
que supõe reconhecer em Humbert.
Apesar de suas pretensões, Charlotte
nunca supera a dona-de-casa burguesa
e convencional: decora a casa com tudo
que vê nos catálogos (o Facebook dos
anos 1950); frequenta a igreja sem a
menor enlevação espiritual; esboça uma
linguagem que julga erudita, mas que na
verdade é kitsch. Diluído pelo cômico, o
lado trágico de sua personalidade fica
quase apagado: uma mulher desesperada
na busca por um marido, que praticamente
odeia a própria filha. Charlotte é na
verdade uma personagem complexa, nem
melhor nem pior do que qualquer pessoa
que conhecemos. Ninguém exceto as
“feminazis” arriscariam um julgamento.
Charlotte funciona como um dos muitos
espelhos que Nabokov segura para o leitor
mirar a si próprio.
Mas Charlotte tem uma filha que, como
nas melhores tragédias gregas, terá papel
importante, ainda que involuntário, em sua
destruição. Humbert casa-se com Charlotte
para poder ficar perto de Lolita, e mantém
sua paixão razoavelmente sob controle,
mas escreve. Escreve tudo. Registra cada
pensamento sórdido, cada apelido, cada
observação maldosa, cada masturbação.
Os diários, trancados, são finalmente
encontrados por Charlotte, que confronta
Humbert, mas fora de si, em um impulso,
atravessa a rua e é atropelada por um
carro. O destino, que o próprio Humbert
apelida de MacFate (MacDestino) sorri para
Humbert, que até então é razoavelmente
inocente. Quando Humbert pensa que é
mais esperto que o destino, começa sua
queda.
Humbert parte para o acampamento
onde está Lolita, e começa com ela uma
viagem pelo país, em uma tentativa dupla
de fazê-la esquecer quem é - afinal, é uma
criança órfã, sem ninguém no mundo - e
transformá-la em amante submissa e
cúmplice do roubo de sua própria vida.
Os detalhes - quem seduz quem, se
Lolita é virgem ou não, se Humbert está
apaixonado ou não - são irrelevantes para
o enredo, mas não para a absolvição que
o narrador quer extrair do leitor. Esses
detalhes são apresentados em linguagem
tal que mesmo o juiz mais severo, a
mãe mais amorosa, esmorecem. É fácil
esquecer que Humbert é um adulto e
que pode, a qualquer momento, cair em
arrependimento, dizer à garota o que diz a
si mesmo - porque sim, ele sabe muito bem
o que está fazendo, o que é exasperador.
Nabokov criou em 1955 um pedófilo
que se encaixaria, hoje, perfeitamente
nos sofisticadíssimos perfis psicológicos
do FBI. É um homem culto, que não se vê
como predador porque não ataca suas
vítimas, observa-as. Cria - aqui com a ajuda
das coincidências - a situação que leve
a presa às suas mandíbulas. Tampouco
trata-se de uma morte rápida: são muitas
pequenas mortes, que começam com
um roçar de pernas que mal poderia ser
evitado. Olhares, presentinhos - e ainda o