68 REVISTA DA CAASP
Você se lembra onde estava no dia 14
de junho de 1982? Todos os argentinos
se lembram. Nesse dia, o general Mario
Menéndez assinou a rendição da Argentina
à Grã-Bretanha perante o general Jeremy
Moore, selando a derrota na Guerra das
Malvinas. Mas os argentinos sofriam
humilhações muito mais pessoais, íntimas
até. Contrariando o apagamento pelo
tempo, a obra de Martín Kohan recria
aquilo que só a ficção pode trazer: o medo
e a vergonha da época. Kohan nasceu em
Buenos Aires em 1967, é professor de
Teoria Literária na Universidade de Buenos
Aires e na Universidade da Patagônia, e já
publicou coletâneas de ensaios e contos e
10 romances, três deles traduzidos para
o português: Duas vezes junho (Amauta
Editorial, 2005), o premi ado Ciências morais
(Companhia das Letras, 2008) e Segundos
fora (Companhia das Letras, 2012). Além de
traduções para muitos idiomas, Kohan foi
considerado por Ricardo Piglia “a voz mais
original entre os autores argentinos de sua
geração”. Recebeu quase todos os prêmios
literários importantes na língua hispânica,
entre os quais o Prêmio Herralde (2008),
correspondente ao Prêmio Camões na
língua portuguesa.
Kohan é um autor de fazer medo.
Essa é uma de suas obsessões. Com suas
raízes literárias firmemente plantadas
nos europeus do começo do Século XX -
Theodor Adorno, Walter Benjamin, Hannah
Arendt - mas regado pelas águas bélicas e
ditatoriais do Río de la Plata, onde beberam
San Martín, José Saer, Manuel Puig, produz
literatura que consegue dizer aquilo que já
foi dito, mas em forma nova, original, sem
hermetismo e sem facilidade. Um tema
presente em seus romances e ensaios é
a violência, suas origens e sequelas, em
qualquer escala: do réptil, venenoso por
ser conivente, ao tiranossauro, invisível,
absoluto feito lápide.
Na sua concepção, a violência está
sempre ligada ao conformismo, produto
do medo coletivo, ao qual ele dá forma
particularmente humana (em seu sentido
biológico) na ditadura militar argentina.
Duas vezes junho passa-se na Argentina
da Copa de 1978, momento de absoluto
controle das massas pela euforia, por um
lado, e pelo medo e dissimulação, por
outro. Trata-se das observações de um
recruta, motorista do médico encarregado
de manter vivas as vítimas de tortura, para
que possam continuar a ser torturadas.
O título refere-se a dois momentos
em junho: um em 1978, quando a
Argentina enfrenta a Itália no Mundial
de Futebol, e outro em 1982, fim da
Guerra das Malvinas e começo do fim
da ditadura mais sangrenta da América
Latina. No primeiro, o povo argentino
está eufórico, bêbado de alegria, única
fuga do terror vigente. No último, o
povo está de joelhos, órfão de milhares
de seus filhos, nada mais a perder. O
pano de fundo é o gramado e futebol,
mas é o que se passa fora dele que
importa, e aterroriza o leitor.
LITERATURA
Malvinas, o pesadelo argentino nos livros de Kohan.
Fotos WEB