carinho pelos gauchos e seus touros
mansos.
Outras vezes o narrador de Kohan é
cruel. De fato, seu narrador mais marcante,
o soldado motorista de Duas vezes junho,
relata com total ausência de emoção as
piores cenas que uma ditadura pode
produzir. Ele já avisa desde a primeira
página, com a frase: ”A partir de que idade
se pode começar a torturar uma criança?”
Assim começa o relato feroz em linguagem
pretensamente domesticada, de um
narrador que tudo vê e ouve, mas finge
para si próprio que não entende nada. O
cenário é Buenos Aires entre Copa do
Mundo de 1978 e 1982. Utilizando seus
recursos de concisão e contundência,
Kohan reúne, por exemplo, em uma
frase, a barbárie de que é capaz um
médico, o horror do roubo de bebês,
e ainda o preconceito racial. Doutor
Padilla, médico do exército, ao comentar
sobre uma criança que nasceria a uma
grávida presa e torturada,
“... havia dito que não dava um centavo
pela vida da mãe, e que os da lista de
espera começariam a pressionar assim
que soubessem que o menino havia
nascido fortinho e que, até onde se via,
teria olhinhos claros.”
Kohan não escreve sob a ótica da
militância, e sim da infância e adolescência
vividas na ditadura. Da amálgama entre
ditadura e Copa do Mundo, ele diz, “A
memória social inventou uma recordação
de pura vitória. Então eu quis fazer um
romance que fosse pura derrota.” Déjà-vu
nos emudece, sufocante.
Há algo de obsessivo em sua atração
pela obsessão. A minúcia na linguagem,
o peso do detalhe (que ao final parece
REVISTA DA CAASP 73
leve), o transtorno que leva à repetição
dos atos, aparecem nos personagens e
são, confessadamente, reflexos do ato
literário. ”Deter-se em cada palavra, escolher
cada palavra, sopesar cada palavra. Gosto de
escrever assim. Saborear essa intensidade
da escritura.” O poder da obsessão é tal
que em domínio metaliterário, Kohan
contamina o leitor com a necessidade do
ato repetitivo. Pouco a pouco, é só nesses
momentos do exercício da obsessão que
sobra a única zona de luz, como em um
zahir borgeano.
A estrutura dos romances é sempre
muito mais psicológica, interna à
imaginação do personagem, do que de
ação. Mas enquanto pensa, narra atos,
seus, de outros próximos, ou de outros
protagonistas de renome, sempre em
boa companhia universal: Raskolnikov,
Mahler, Cortázar. A linguagem em seus
romances é sofisticada, não porque
utilize vocábulos inusuais mas por sua
construção delicada, frases longas que se
alternam com outras surpreendemente
LITERATURA
Copa de 78: catarse esportiva em meio a uma
ditadura sanguinária.