como o animalesco no tremer
de uma ala do nariz. Em uma
demonstração de absoluto
controle do ponto de vista, esse
narrador em terceira pessoa não
é onisciente, mas sim obsessiva,
intimamente atento. É María
Teresa em terceira pessoa. É
compreensível que ela não possa
contar sua história em primeira
pessoa, há muita vergonha aí: a
masturbação; a indizível atração
pela sensualidade de um aluno
(ou todos); a vida sem vida fora
da escola, onde a vida deveria
estar; o medo inconfessável do
que pode acontecer ao irmão
nas Malvinas, representado
pelo mutismo nos cartões
postais que ele envia; e finalmente,
caracterizando a mais abjeta violência,
um estupro pela mão, porca e grotesca.
Não há julgamento, é fato, mas o título do
livro já diz tudo. A imoralidade de Biasuto
é fácil de determinar, já a de María Teresa,
nem tanto. A partir de que momento em
sua obsessão por competência é que
descobre o prazer em vigiar o próximo? E
quando é que esse prazer se transforma
em uma “comichão que lhe vem” de dentro
da calcinha? E se fosse um aluno, o “seu”
aluno, que entrasse em seu cubículo, e
a possuísse, seria estupro? E se fosse o
contrário, se ela fosse um jovem ingênuo
vigiando garotas, qual seria nossa leitura?
A moral nada tem de científica. Quando
essa narradora tão bem controlada se olha
no espelho, e a nós mesmo que vemos.
Violência e medo transitam vertical e
horizontalmente na Argentina da ditadura.
Nesse romance, a escola é metáfora
cuidadosa para o país. O isolamento
intramuros; as proibições a todas as
manifestações de individualidade; a
repressão à sexualidade, símbolo universal
REVISTA DA CAASP 71 LITERATURA
Ricardo Piglia: ”Kohan é a voz mais original entre os autores
argentinos de sua geração”.
do incontível; a linguagem programada; a
marcha e os uniformes; tudo que poderia
ser absolutamente normal para a época
em uma escola pública, toma um caráter
sombrio e glacial. Quando não havia o que
temer, temia-se o medo. Não é fato que
cães ferozes farejam o medo em você? Se
houver cães por perto, não sinta medo,
eles saberão. Mas a palavra medo não
aparece em sua prosa. Um dos aspectos
mais intensos dessa obra é o quanto não
se sabe do que realmente se passa, quanto
imagina-se, e quanto é perigoso saber.
Na sua complexidade, esse narrador
propõe um jogo pouco usual ao leitor:
pequenas cenas do grotesco saltam para o
cotidiano e o subjugam. Ora em primeira
pessoa, ora em terceira, o narrador de Kohan
faz mais do que narrar, ele é estrutural.
Conduzido pelas mãos do narrador, o leitor
não poderá abandonar-se ao deleite fácil
do enredo. Em Segundos fora, romance que
retrata a histórica luta entre Jack Dempsey
e Luís Angel Firpo em 1923, a câmera ultra-lenta
transforma os dezessete segundos
de boxe que discorrem entre o golpe de
Arquivo C.J.