
LITERATURA 60 REVISTA DA CAASP
subversivo. Ele traduz: quatro beterrabas,
duas cebolas, creme de leite... Trata-se de
uma receita de borscht, uma sopa muito
apreciada, servida fria ou quente. A censura é
trágica, a ignorância é ridícula.
Nas cartas que o sapateiro lê há de tudo:
amor, negócios, saudades, boas e más notícias
- parece simples. Mal sabe ele que é mais fácil
controlar o ódio do que o amor: “... ninguém
desconfiava que a vida não cabe em cartilhas
e que o destino é uma nau desgovernada
onde só nos resta varrer o convés”.
Em pouco tempo, as cartas lhe apresentam
um mundo cheio de vida e poesia do qual
tem fugido. Se até então satisfazia-se com
mulheres com hora e preço marcados, agora a
beleza das palavras desperta uma curiosidade
que o leva até o cinema. Apaixona-se por
Hannah, que escreve cartas amorosas do Rio
à sua irmã, Guita, na Argentina. Começa a
imaginar essa mulher “linda, inteligente, sábia,
corajosa”, quer conhecê-la pessoalmente. E já
que o mundo judaico no Rio de Janeiro dos
anos 30 estava principalmente circunscrito
à Praça Onze, não demora até que Hannah
venha trazer um par de sapatos à sapataria
de Max.
Há muitas surpresas na trama que se
desenvolve a partir deste encontro entre Max
e Hannah, mas a verossimilhança fica por
conta do contexto histórico e até geográfico
do Rio de Janeiro. Impossível contar mais do
enredo sem spoilers, mas há muito mais do
que o enredo para se contar. Ronaldo Wrobel
recria um Rio de Janeiro que jaz debaixo do
asfalto da Avenida Presidente Vargas e de
tudo que veio depois.
“Morava no Edifício Topázio, vizinho ao
botequim. Era um prédio novo com cinco
andares em pó de pedra, estreito e comprido.
Mais um desses portentos modernos
que pipocavam da noite para o dia. A
cidade crescia a passos largos e cada
vez mais se falava na construção da
tal avenida entre a Cidade Nova e o
Arsenal da Marinha. Morros inteiros
iam abaixo … De repente, aquela
vila já não existia, aquele casarão
se transformara em escombros. A
tradição agonizava onde quer que o
futuro fincasse suas ávidas estacas.”
Mesmo para o leitor que não
conhece o Rio de Janeiro ou nem
mesmo viu fotos do Rio antigo, é
possível escutar os sons do bonde
Wrobel, autor de linguagem direta e poética.
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Filinto Müller, chefe da repressão de Getúlio.
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