
O sapateiro do bairro é uma figura
amistosa. Um sujeito simplório, que trabalha
com seriedade, atento aos detalhes dos
pontos, fivelas, solados. Ninguém desconfia
do sapateiro. Para o azar de Max Kutner,
humilde sapateiro refugiado da Polônia, essa
aparente passividade é justamente o que o
transforma em peça-chave da máquina de
delação de Filinto Müller, chefe da repressão
no primeiro governo Vargas.
Max é o protagonista do romance
Traduzindo Hannah, de Ronaldo Wrobel
(Record, 2010), escritor e advogado carioca,
traduzido para diversos idiomas e finalista do
Prêmio São Paulo de Literatura na categoria
Melhor Livro do Ano. Wrobel é autor de
cinco livros, três dos quais são romances. Em
todos, a linguagem é direta mas poética e
REVISTA DA CAASP 59
pontuada de humor sutil; a trama é cheia de
reviravoltas e os personagens são sempre de
carne e osso.
Em Traduzindo Hannah, no Rio de Janeiro
de 1936 nada é o que parece. O sapateiro é
intimado a comparecer à sinistra Delegacia
da Rua da Relação (que ainda existe), onde
lhe “sugerem” que colabore com o regime
traduzindo a correspondência entre judeus
no Brasil e na Argentina, escritas em iídiche,
a antiga língua dos judeus da Diáspora, uma
espécie de alemão arcaico escrito com o
alfabeto hebraico. Os boatos, infelizmente
verídicos, de incontáveis casos de perseguição,
tortura e morte de suspeitos, deixam Max
dilacerado. O que fazer: delatar ou lutar?
A Intentona Comunista, em 1935, já havia
facilitado para Getúlio justificar a repressão
e criar um ambiente de desconfiança. Nas
entrelinhas do romance está o antissemitismo
intenso das décadas de 30 e 40, disseminado
por (mais) um falso documento que “indicaria”
a existência de uma conspiração judaica
comunista para derrubar o governo Vargas.
Tratava-se do Plano Cohen, forjado pelo
capitão integralista Olímpio Mourão Filho para
dar apoio ao golpe do Estado Novo, que viria
pouco depois. Era a versão anos 30 das fake
news, copiando um modelo ainda mais antigo,
o infame Protocolos dos Sábios do Sião,
forjado para reforçar o poder do Czar Nicolau
II da Rússia por volta de 1900. No Brasil, os
judeus refugiados do Leste Europeu, com
seus costumes , vestes e idioma diferentes,
eram alvo fácil. A censura à correspondência,
publicações e teatro em idiomas dos grupos
étnicos “perigosos” acrescentou ao medo a
submissão.
Nesse contexto, Max Kutner encaixa-se
perfeitamente. Percebe que não tem saída, e
resolve salvar o que pode nessa situação. Já em
sua primeira visita à delegacia, apresentam-lhe
um bilhete perigoso encontrado no
chão, e exigem que explique seu conteúdo
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