Subjacente a tudo isto estão vidas fraturadas.
Não há exageros, nada de suicídio em massa
ou tempestade cósmica. A cena mais violenta é
um furto de celular à luz do dia - praticamente
um ritual de passagem da cidade grande.
Tezza leva a realidade muito a sério,
mesmo quando é feia de se ver. Rachel, a
esposa adúltera, atribui o fim do casamento
à frieza e à indiferença do marido, mas
nada parece mais frio do que o deslize
(leia-se “maldade”) de revelar seu segredo
silenciosamente, na madrugada. Ao telefone,
o filho Daniel regurgita com violência sobre
o pai os chavões marxistas do proletariado
europeu do Século XIX, acusando-o do crime
de pertencer à burguesia, fascismo, bla,
blá, blá, até ver-se obrigado a admitir que
o motivo da ligação é pedir dinheiro, já que
gastou a mesada em maconha. Nem Rachel,
nem Daniel percebem que acusam Espinhosa
de seus próprios erros, mas para o leitor isso
fica muito claro. Não são caricaturas, são
personagens da realidade.
Essa marca realista faz parte da obra de
Tezza desde o lançamento de Trapo, em 1988
(relançado em 2018), em que o dinheiro e a
política não poderiam faltar, apresentados
por meio de referências literárias. “A única
coisa que, de fato, une o banqueiro ao
mendigo, que os coloca no mesmo barco
mental, é o valor social do dinheiro”, diz o
próprio personagem.
Banqueiro e mendigo são figuras da
literatura clássica que aborda o tema do
valor social do dinheiro, como por exemplo
em O príncipe e o pobre, de Mark Twain,
lançado em 1881, e em o Mercador de Veneza,
REVISTA DA CAASP 53 LITERATURA
de Shakespeare. Mas em A tirania do amor
o dinheiro não é um fim em si, é um meio.
Espinhosa é um virtuose dos números, mas
seu senso moral não lhe permite transformar
o dinheiro em substituto para o amor
perdido. Como para a maioria de nós, para
WEB
Twain: valor social do dinheiro.
ele o dinheiro não é o centro de sua vida, é
parte dela; não é capaz de resolver todos os
problemas, tampouco é a causa de todos eles.
Espinhosa é um Homem Comum
semelhante ao personagem medieval, que
mediante uma crise em sua vida repassa
todos os seus atos. Mas enquanto o Homem
Comum medieval só faz esse balanço após a
morte, o personagem de Tezza faz isso em
vida, o que lhe atribui um certo otimismo, já
que terá uma segunda chance. E homens (e
mulheres) comuns que somos, é isso, afinal,
que todos queremos.|
*Vivian Schlesinger e escritora e tradutora.
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