
ficcional quanto acadêmica. Em Opulência, a
alma fraturada do exilado habita a casa de
todos os personagens. Estando longe de Paris,
Mme. Némirowska, paradoxalmente, se sente
mais perto de Paris, porque a Paris que ela
habita não é a Paris à qual se pode chegar (p.
129). Em uma “tomada indoors” da câmera
da memória do narrador, ele enxerga, num
mapa de vinhos do Vale do Loire, o que está
e não está ali:
Retalhos de outras existências juntavam-se
ali, como os dispersos dos quatro cantos do
mundo que, segundo a profecia, um dia tambén
serão reunidos: uma coleção de horas e de
coisas perdidas que sobreviviam aos desastres
da história, como se quisessem comprovar o
poder do retorno. (p. 74)
Na acidez da ironia, mas também no
lirismo de uma linguagem cintilante, visita-se
os continentes da literatura, da escada do
REVISTA DA CAASP 59
sonho de Jacó ao oitavo círculo do inferno de
Dante; dos filhos de Korach, primo de Moisés,
engolidos pela terra, até as casas dos homens
ricos com uma escada para subir e outra para
descer, como nos contos de Sholem Aleichem.
E há momentos de leveza, como na descrição
das peras embalsamadas em água com açúcar,
com cravo e canela em pau, ou da areia que,
à noite, os homenzinhos invisíveis lançavam
nos olhs das crianças, obrigando-as a fechar as
pálpebras por causa da coceira e levando-as a
adormecer. (p. 69)
Para dizer a verdade sobre as coisas, de
toda essa viagem, o momento mais feliz,
literariamente, e mais triste, para quem
gostaria de segurar o tempo com as mãos - e
quem, não? - está logo ali, para o leitor:
A felicidade era um momento excepcional e
transitório, uma lacuna no quadro governado
pelas letras miúdas de um contrato invisível, que
tinha sido assinado sem a necessária cautela e
agora tinha que ser cumprido. (p. 92)
Que venham as lacunas.|
*Vivian Schlesinger é escritora e tradutora.
LITERATURA WEB
Krausz: “A felicidade era um momento
excepcional e transitório”.