
chá da tarde na recém-inaugurada mansão
de veraneio de D. Marianne Némirowska.
O convite é incomum porque em São Paulo
ela circula em uma esfera exclusiva de
colecionadores de arte, aqueles poucos que
possuem, ou pensam possuir, Matisses,
Manets, Van Goghs. Em seu gigantesco
apartamento na Rua Haddock Lobo, cuja
sala é revestida de seda vermelha, opulentos
jantares são oferecidos a convidados da
alta roda, gente que levanta-se ao meio-dia,
almoça às três da tarde e janta às onze
da noite - feine leute, gentes finas, na ácida
opinião da avó. A família Krausz não faz parte
desse círculo em São Paulo, mas em Campos
do Jordão Mme. Némirowska não tem plateia,
daí o inesperado convite.
Os preparativos agitam os dias da família
e aceleram a narrativa. O narrador conduz
o leitor como se usasse duas câmeras.
Uma para exteriores, às vezes ensolarados,
outras vezes enevoados, onde as nativas
araucárias são derrotadas
pelas vistosas hortênsias,
contrabandeadas desde
a Europa e muito bem
sucedidas nesse novo
habitat. Outra câmera é
para interiores de madeiras
escuras, gavetas raramente
abertas, povoadas por
objetos herdados dos avós
ou bisavós. Exatamente
como a alma do exilado: por
um lado, alguém que anseia
por viver no presente,
uma vida solar, ambientar-se
e ser feliz no novo lar,
ainda que precise às vezes
aceitar a substituição de
sua identidade pelo novo e
superficial; por outro lado,
alguém cuja essência é feita
de memórias do mundo deixado para trás,
que não têm fins utilitários mas nem por isso
REVISTA DA CAASP 57
devem ser abandonadas. Mas no presente
do narrador, nem tudo é solar: o romance se
passa durante a ditadura militar, devidamente
caracterizada:
O ministro das Relações Exteriores do governo
do General Ernesto Geisel, Antônio Francisco
Azeredo da Silveira, era figura frequente nos
noticiários. Ele causava revolta. Mas o apelido
mais áspero cabia ao General Ernesto Geisel,
que era conhecido como Der Scheissel. (algo
próximo a “O Merdão”)
O garoto lembra de Filinto Müller
(ein Bluthund, um cão sanguinário) e sua
indisfarçada simpatia pelo nazismo, e de sua
morte no acidente de avião da Varig em 1973,
junto com mais 115 passageiros, sufocados
pela fumaça tóxica provocada por um
incêndio em um dos banheiros. A ironia de tal
destino, reservado a um verme nazista, não
passa despercebida pela avó do narrador:
“Der Teufel soll ihn holen.” “Que o diabo o
carregue.” (p. 173)
A origem judaica da família Krausz
é parte da bagagem essencial que, por
recusarem-se a abandonar, obriga-os, às
vezes, a pagar uma alta taxa de excesso de
peso. Já a ‘Tia Susanna Frank’ paga o preço
por abandonar a bagagem. Judia de Danzig
forçada a fugir para Paris com a ascensão
daquilo que ascendeu na Alemanha em 1933 e
em 1936 e depois de 1936...(p. 166), amiga da
família Krausz, vencida pela vaidade, havia
aceitado um cargo de confiança na Prefeitura
de Paulo Maluf. E eis que é chegada a hora de
Rumpelstiltskin exigir seu pagamento: Maluf
pede que Tia Susanna Frank o represente
na missa de sétimo dia em honra a ninguém
outro que o finado cão sanguinário.
Enquanto isto, as transformações
impostas pelo progresso à antiga Campos do
Jordão são igualmente cruéis. Ora é a horda
de turistas nas ruas que tira a paz de espírito,
o barulho das motos de múltiplas cilindradas
que invade trilhas até então quase secretas,
WEB
LITERATURA