
56 REVISTA DA CAASP
o narrador cresceu em uma casa onde a alta
cultura é um grande valor, herança austro-alemã
reverenciada pela família. Ele atravessa
sem dificuldade, em ambas as direções, a
fronteira entre presente e passado. Para
ele, folhear antigas agendas, intactas, da
escrivaninha da avó ...tinha o sabor de uma
atividade proibida. Voltar às páginas de 1964
observe a data ou de 1966 significava opor-se
às leis do progresso. (p. 75)
Uma das técnicas mais originais de
Luis Krausz aqui é o uso corriqueiro, pelos
personagens, de expressões idiomáticas em
alemão para sintetizar a ética do germanismo.
Relata, por exemplo, o misterioso sumiço de
dois cobertores de lã Merino, que cobriam
de paz e de calor o sono das noites frias da
montanha (p. 62). Quando interpelada a
respeito, a caseira responde com uma
carranca silenciosa. Pronto, decreta a avó, não
se fala mais nisso, não convém aprofundar-se
na investigação. “Não convém.”
... era a tradução da
expressão alemã “lieber
nicht”, literalmente, “é
preferível não” ... uma
sentença para a qual
não cabia recurso ...
Era o último carimbo
da autoridade absoluta,
a sentença final que
chegava a nós depois de
percorrer os labirintos
da burocracia do Estado,
e também os labirintos
do tempo e da distância,
provindo de antigos
éditos imperiais. (p. 62)
Por trás de duas
palavrinhas, nada
menos do que a essência
do caráter alemão, a obediência à autoridade,
que permitiu que os alemães dessem ao
mundo os piores, mas também alguns dos
melhores presentes. Mas há personagens no
livro (e no Facebook) para quem Paris, e não
a austeridade germânica, exerce um fascínio
irredutível que nada tem a ver com a realidade
de violência, xenofobia e antissemitismo que
asfaltam as avenidas parisienses. Uma tia do
narrador, paradigma da elegância na família,
lembra uma celebridade qualquer da Revista
Caras:
...com seu sotaque francês e com seus lenços
de seda esvoaçantes e lindíssimos ... Exalava
os ares dos Grands Boulevards, onde pairava
le vrai chic parisien. ... Um livro menor da
francofonia, uma obra secundária no grande
mapa da imprensa escrita francesa, parecia
guiá-la como uma bíblia apócrifaa. Eu suspeitava
que o nome desse livro fosse Paris Match.
O fio condutor do romance são os
preparativos para uma visita incomum, um
“....é um romance sobre Campos do Jordão e não é um romance sobre
Campos do Jordão (...) Trata-se da busca do tempo perdido de qualquer
cidade ou pessoa atravessada pelo rio obsessivo do progresso”.
LITERATURA