
LITERATURA 58 REVISTA DA CAASP
ora são os xingamentos no trânsito de Capivari,
onde antes só os passarinhos gritavam. A vida
austera, a confiança nos estalos do pêndulo
do relógio, a serenidade de um escritório
onde tudo tem seu lugar e tudo está em seu
lugar, talvez nunca existiram em Campos do
Jordão exceto na memória da família Krausz,
mas é devastadora a constatação de que
agora definitivamente não existirão mais.
Holocausto, sobrevivente, campo de
concentração, nenhuma destas expressões é
citada, mas o narrador revela muito naquilo
que não conta, particularmente sobre o ‘Tio
Jan’, judeu tcheco sobrevivente de campo de
concentração. Como no caso em que, toda vez
que a velha torradeira da casa em Campos do
Jordão emperrava e acabava queimando as
torradas, era o pai do garoto
que se responsabilizava por tudo e comia os
remanescentes do incêndio, sem reclamar. ...
Todos sabiam onde o Tio Jan tinha passado a
guerra, na Europa, e o que tinha sido obrigado
a fazer durante a guerra, na Europa, e todos
sabiam quanto valeria, naquele lugar onde ele
tinha passado a guerra, uma fatia de pão meio
esturricada e meio carbonizada como aquela.
(p. 32)
Citações de passagens bíblicas e litúrgicas
sugerem que a bagagem do passado desses
personagens é muito anterior ao século XX,
como se a vida da família Krausz e de seus
amigos e conhecidos fizesse parte - e faz - de
um círculo muito maior. Enquanto observa
a mesa de café da manhã, o garoto olha em
volta.
... os raios de sol se aconchegavam nos
lambris de araucária envernizada, cujos nós
escuros desenhavam palavras em alfabetos
desconhecidos. ... Ali estavam escritas as
orações matinais que eram repetidas todos os
dias, os mantras do sol e da luz do inverno nas
montanhas. (p. 31)
Luis Krausz lança mão de sua cultura
enciclopédica para levar o leitor por sequências
de associações da mais profunda análise
psicológica do nomadismo. Um dos mais
belos exemplos refere-se à mansão de Mme.
Némirowska onde deveria ocorrer o tal chá da
tarde. Inicia-se com um dos quadros expostos
em sua sala em São Paulo, uma paisagem de
Jacob van Ruisdael, pintor holandês do século
XVII, onde se vê um plátano à beira de um
riacho, ao lado uma choupana de telhado
de feno. Não satisfeita em contemplar a
paisagem na tela, a colecionadora adquire um
terreno semelhante em Campos do Jordão
onde manda plantar um plátano à beira do
córrego e constrói um casarão com telhado
de feno. Agora,
... é como se ela pudesse ... viajando até
Campos do Jordão, entrar num dos quadros
que estão expostos na parede do seu salão. ...
Estando em Campos do Jordão, onde não há
quadros de Jacob van Ruisdael, ela contempa
o casarão com telhado de feno e se lemba do
quadro de Jacob van Ruisdael, que está numa
das paredes revestidas de seda vermelha de
seu apartamento. A pessoa está num lugar e
pensa em outro lugar. Ao fazer assim, é como se
estivesse, ao mesmo tempo, em um lugar e em
outro lugar. (p. 48)
O tema do nomadismo é, de longe, o mais
intenso em toda a obra de Luis Krausz, tanto
WEB
“O apelido mais áspero cabia ao General
Ernesto Geisel: Der Scheissel.”