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Revista da CAASP - Edição 21

Fevereiro 2016 / Revista da CAASP // 31 Companheiro das traquinagens do narrador, há o irmão, personagem enigmático de quem Modiano nunca fala o nome. Não se demora a perceber que há um mistério na memória que o escritor guarda do irmão, mas este mistério não é revelado no livro. Somente por sua biografia vamos saber que o irmão morreu quando o autor tinha 10 anos de idade e que isto o marcou profundamente. Dado o título do romance, a todo o momento o leitor fica na expectativa da narração de um crime e, de fato, há um crime na história. Mas não se sabe ao certo de que crime se tratou. Aparentemente, no entanto, foi esse crime que acabou por encerrar a fase da infância do personagem-narrador referida no romance. O personagem-narrador, Patoche, diminutivo de Patrick, é criado por mulheres de cabaré e os personagens masculinos são tipos envolvidos com jogo e sabe-se lá mais o quê. Os pais haviam seguido numa longa turnê com um circo e deixado os filhos aos cuidados dessa gente. A questão era grave o suficiente para ele ter sido expulso da escola primária particular em que estudava, sem que houvesse nada feito por merecer, em virtude das más companhias com quem vivia, segundo justificou a diretora. No alvorecer da vida, Patoche vê com inocência todas essas pessoas e não chega a se dar conta do que fazem para viver. Ele narra o cotidiano de uma convivência feliz, carinhosa e familial. E revive nas memórias da infância as coisas de menino que quase nem mais existem, ou pelo menos não mais existem em muitos lugares: campeonatos de pipa, carrinhos de bate-bate, velhas construções mal-assombradas a nos desafiar para aventuras, o professor que todos os dias pedia para que recitássemos um poema e a gente que recitava sempre o mesmo; coisas assim: singelas, mas não vulgares. É de se perguntar a que pena o autor se refere no título do livro? Sabemos que houve uma pena de prisão pelo crime que a história não diz qual foi. Mas seria a absolvição desse crime, a remissão dessa pena, aquilo de que trata o livro? É ler para saber. E para perceber que a mais singela literatura nem por isto é linear ou inequívoca. *Luiz Barros é escritor e jornalista. Modiano: mistério na memória e expectativa de crime


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