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Revista da CAASP - Edição 19-

\\ mudou-se para o Rio de Janeiro, após a morte da mãe. Sua mãe morreu em Recife, quando ela tinha nove anos, de uma doença incurável à época: segundo o biógrafo seria uma sífilis, ao que supõe contraída em 1919, ao ser violentada por soldados russos nos pogroms que se sucediam ao meio da guerra civil no território ucraniano. Clarice teria, bem ao final de sua vida, confidenciado tal fato à amiga mais íntima. Num manuscrito inédito, ela registrou: “Tem uma coisa que eu queria contar mas não posso. Vai ser muito difícil escrever minha biografia, se escreverem”; Moser cogita que essa coisa poderia ser a violência sofrida pela mãe e que deve ser entendida como um dos fatos centrais da vida da escritora. Em 1968, em sua única alusão direta a esses eventos, Clarice escreveu: “Fui preparada para dar à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe”. Outra biografia recente e importante sobre a escritora e sua obra é Clarice - uma vida que se conta, que consiste na tese de livre-docência da professora de literatura Nádia Battella Gotlib, publicada em livro pela EDUSP (6ª edição em 2010). A pesquisadora publicou outros livros sobre Clarice, inclusive uma fotobiografia. Ucraniana de nascimento, Clarice é brasileira desde a mais tenra idade. Brasileira naturalizada, ressentia-se quando considerada estrangeira. Mas sua figura era a de uma estrangeira. Sua beleza exótica tinha os traços das mulheres do leste europeu, seu falar carregava sotaque, seu silêncio enigmático no trato social trazia suspeições. Em torno de sua figura misteriosa criaram-se lendas. Sua vida e sua obra alçaram-na à dimensão de um mito. Quanto à sua naturalidade, considerava-se pernambucana. Mas dela Antonio Callado disse ser estrangeira na Terra: não pertencia a este mundo. A escritora vivia permanentemente a sensação do desterro, talvez, sentimento comum aos judeus e outros imigrantes a quem as raízes da terra natal foram subtraídas. Sua linguagem igualmente remetia ao estrangeiro. O poeta Ledo Ivo comenta: “Não haverá, decerto, uma explicação tangível e aceitável para o mistério da linguagem e do estilo de Clarice Lispector. A estrangeiridade em sua prosa é uma das evidências mais contundentes de nossa história literária e, ainda, da história de nossa língua. Essa prosa fronteiriça, emigratória e imigratória, não nos remete a nenhum dos nossos antecessores preclaros ... Dir-se-ia que ela, brasileira naturalizada, naturalizou uma língua.” 38 // Revista da CAASP / Outubro 2015 Antonio Callado sobre ela: “não pertence a este mundo” WEB


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