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Revista da CAASP -Edição 17

Nos anos de chumbo da ditadura gostava de considerar sua obra “engajada, comprometida com a difícil condição do ser humano num país de tão frágil educação e saúde. Em seu romance As Meninas (1973) ela registra uma posição de clara recusa ao regime militar. Em 1976, fez parte de um grupo de intelectuais que foi a Brasília entregar um manifesto contra a censura, o Manifesto dos Mil”, conforme consta de sua biografia no site da ABL. Para saber por que Lygia Fagundes Telles é considerada a primeira-dama da literatura brasileira bastaria ler sua antologia Meus Contos Preferidos (2004), livro hoje esgotado e que mereceria ser relançado. A obra reúne 31 contos escolhidos pela própria escritora, a partir exclusivamente de seu gosto, sem levar em conta cronologia ou temática. A leitura desses contos demonstra que, ao contrário do que pensam os tolos, grandes escritores e escritoras precisam, em primeiro lugar, saber escrever. Não basta a badalada “criatividade”. Imaginação criativa é o que não falta a Lygia, mas o que a torna mestre do conto é saber escrever muito bem, sob todos os aspectos, dominando o idioma, o estilo e o gênero. A linguagem é simples, direta, firme e sem censura, muitas vezes reflexiva e em geral delicada. De conto para conto há variações de estilo, de ritmo, pontuação e forma de narrativa. Várias histórias são narradas na primeira pessoa, mas amiúde essa primeira pessoa é apenas o deslocamento da autora para perspectivas de mundo que não são as suas, senão as dos personagens. Como no caso de “Anão de jardim”, em que o personagem, uma estatueta de pedra, narra sua própria demolição. Ou, também, o caso de um homem, escritor, obeso e solitário, que descreve sua ambígua relação com o irmão, em “Verde Lagarto Amarelo”. Diversas histórias avizinham-se do sobrenatural, podendo também ser considerados surrealistas por sua mescla com os sonhos, o mundo onírico de Lygia, muitas vezes presente e que se entremeia nas narrativas. É o caso da história de “As formigas”, que reconstroem laboriosamente durante a noite um esqueleto de anão encontrado por duas jovens estudantes num quarto de pensão onde antes habitava um estudante de medicina. A crítica político-social irônica também melhor qualifica como surrealista o conto “Seminário dos ratos”, que de outra forma seria sobrenatural. O conto satiriza a atuação da Ratesp, uma repartição pública de combate aos ratos, e a resposta dos roedores aos nababos burocratas. Também em outros momentos a escritora avizinha-se do sobrenatural, como em “Venha ver o pôr do sol”, em que um casal de namorados passeia por um cemitério abandonado. Mas a interpretação do desenlace fatal, sobrenatural ou criminal, fica em suspense, por conta do leitor. Num universo ficcional que inclui temas como esses, não faltam tramas e personagens geralmente considerados pesados. Mas no texto de Lygia Fagundes Telles, ratos, formigas que recompõem esqueletos, passeios em cemitérios abandonados e outras situações assemelhadas são narradas com naturalidade e discrição, sem causar mal-estar, mas apenas suspense e prazer pela leitura. Junho 2015 / Revista da CAASP // 37


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