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Revista da CAASP - Edição 11 --

44 // Revista da CAASP / Junho 2014 \\ Na construção da dimensão fantástica, destacam-se ainda grandes metáforas narrativas, cujo significado simbólico não pode ser desconsiderado no plano geral da obra. É o caso, por exemplo, da peste da insônia, uma doença conhecida pelos indígenas, que em certo tempo ataca o povoado de Macondo, e é assim descrita: “... a índia explicou que o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço, mas sim a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado”. À medida que o romance se desenvolve e a história dos Buendía e de Macondo evolui, sucessivas dimensões do tempo se sobrepõem, tal qual acontecimentos ocorridos em épocas diferentes fossem aparentemente simultâneos e personagens de diferentes gerações interagissem no imaginário da família como se fossem contemporâneos uns dos outros. Essa circularidade do tempo é acentuada e pontuada pela longevidade da matriarca Úrsula, que zela por filhos, netos, bisnetos e tataranetos, aparentemente vivendo por mais de 125 anos, e pela presença rediviva do cigano Malquíades, amigo do primeiro patriarca, cujos pergaminhos cifrados narram e determinam o destino da família. García Márquez é um grande contador de histórias e escreve muitíssimo bem, qualidades que hoje, inutilmente, por vezes tenta-se dispensar nos escritores. Passadas cinco décadas, seu estilo mágico de literatura encontra-se incorporado a nosso repertório de leitura a tal ponto que ao revisitar sua obra prima o que mais chama a atenção de início, para lá dos aspectos fantásticos da narrativa, é a invejável fluência da escrita e a maestria do autor no domínio do enredo. Para concluir devemos considerar que a história de uma família e de um longínquo lugarejo, embora contada em memorável estilo, não teria sido argumento suficiente para a construção de uma obra icônica como veio a se tornar Cem Anos de Solidão. García Márquez neste livro alegórico e mítico alcançou construir uma epopeia burlesca da Colômbia e da América Latina.


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