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Revista da CAASP - Edição 11 --

Nessa perspectiva, o fantástico pode ser entendido como um conjunto de adereços de estilo a serviço da arte, conferindo ênfase ou poesia às histórias narradas. Pode-se também pensar nos desvarios surrealistas de García Márquez como contador de histórias qual fossem disfarces de linguagem e dissimulações de narrativa – álibis que lhe permitem dizer o indizível. As dimensões fantásticas, assim, são também recursos de que se valeu o autor para a camuflagem da crítica social e política embrenhada no romance. Afinal, quase ao final do livro, em discreta passagem, por um dos personagens ele descreve a literatura como se fosse “o melhor brinquedo que se inventara para zombar das pessoas”. É lícito, assim, pensar na exuberância dos aspectos fantásticos não apenas como adereços estilísticos, porém como uma forma que viabiliza o realismo essencial do escritor, permitindo-lhe retratar criticamente, na década de 1960, época de ditaduras, coisas sobre as quais não se podia falar de outro jeito na América Latina. O fantástico, o mágico e o maravilhoso se expressam no livro por várias formas. A mais comum talvez seja a hipérbole, configurada em constantes e repetitivos exageros narrativos de que o autor se vale, como, por exemplo, ao descrever o personagem central da história, o coronel Aureliano Buendía, que na vida real teria correspondência com seu avô, o coronel Nicolás Márquez, esposo de Tranquilina: “O coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo.” ... e por aí segue ainda longamente a caracterização desse coronel Aureliano Buendía, para ser revisitada várias vezes durante a narrativa, sem deixar de notar o escritor a poesia que também contamina esse personagem que “dispensou a pensão vitalícia que lhe ofereceram depois da guerra e viveu até a velhice dos peixinhos de ouro que fabricava na sua oficina de Macondo.” Convivendo sem antagonismo com passagens bizarras e violentas, é comum o autor imprimir, por meio da hipérbole, tonalidades poéticas em meio ao romance; veja-se outro exemplo no episódio da morte do primeiro dos patriarcas Buendía, José Arcádio Buendía, o fundador de Macondo, que no fim da vida enlouqueceu e passou anos amarrado a uma árvore no jardim do casarão da família: na noite em que faleceu, uma tempestade silenciosa de minúsculas flores amarelas caiu do céu sobre o povoado, a ponto de que para o enterro passar foi preciso abrir caminho com pás e ancinhos. A literalidade é outra figura do maravilhoso em Cem Anos de Solidão, sendo disto o melhor exemplo a passagem em que um jovem apaixonado, por não ser correspondido, morre de amor ao lado da janela do quarto de sua amada. Junho 2014 / Revista da CAASP // 43


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