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Revista da CAASP - Edição 22---

OPINIÃO \\ 38 // Revista da CAASP / Abril 2016 A delação premiada e o réu inocente Por Dora Cavalcanti* A lógica da acusação enxerga na colaboração premiada a última das maravilhas, um dos mais importantes meios de prova, aquele que permite que as investigações, em Arquivo D. C. especial aquelas tidas como de alta complexidade, avancem com celeridade e eficiência. Nada mais distante da verdade. Lamentavelmente, a exaltação da delação premiada no Brasil é construída sob a perspectiva de que o acusado no mais das vezes é culpado, e como tal deve confessar seus crimes para expiar sua culpa. Essa fórmula mágica, todavia, representa o ápice da crueldade para quem é acusado injustamente e acaba atingido por seus reflexos - quer queira quer não. Destaco dois aspectos relacionados à crescente aplicação do instituto que vejo com especial preocupação: (i) o tratamento não isonômico em matéria de tutela da liberdade dispensado a acusados que aderem e aos que não aderem à delação, e (ii) a obrigação de desistir de eventuais recursos quando dessa adesão à colaboração, exigência que, embora não tenha previsão legal, vem sendo implementada nos acordos celebrados no bojo da vultuosa operação Lava Jato. Antes de abordá-los diretamente, cabe fazer uma ressalva fundamental. Independentemente da visão crítica que o advogado possa (e deva) ter do uso massificado da delação premiada como solução para causas penais, nenhum julgamento moral pode ser feito em desfavor da pessoa do acusado que decide aderir à colaboração para conquistar sua liberdade. Do ponto de vista humano, não há nenhum exagero em afirmar que exigir do inocente que resista bravamente a meses sem fim de espera para o julgamento de um habeas corpus equivaleria, sem nenhum exagero, a exigir que o torturado não confessasse aquilo que fez e mesmo o que não fez, “dando o nome” de inimigos e de amigos indistintamente. Quem se atreve a apontar que há nisso cerceamento do sagrado direito de defesa encontra pela frente um sem número de inquisidores, prontos a pontificar que o que está em jogo é a moralidade do país. É certo que nunca foi divertido ser réu em uma ação penal. Hoje, porém, até o acusado mais destemido fica dividido entre trilhar o arriscado e sofrido caminho de demonstrar sua inocência e o pragmatismo total consistente em admitir, resignado, um delito, que acredite em seu íntimo não ter cometido. Consideremos a hipótese de uma pessoa injustamente acusada que está privada de sua liberdade, entregue às agruras do sistema carcerário brasileiro. Como suportar os horrores da cadeia, lutando nos tribunais para reverter uma prisão preventiva, e não sucumbir à tentação de dizer o que for preciso para retornar rapidamente ao conforto do lar? A depender da situação física e psicológica em que se encontra o preso, a “opção” pela delação é desde logo irresistível, inclusive reforçada pelo pedido dos familiares que não suportam conviver com situação de ilegalidade tão flagrante. O que será feito então do inocente postado estoicamente no cárcere? Está flechado por todos os lados, acusado pelo Ministério Público e pelos corréus que tentam salvar a própria pele por ordem de chegada. O preso, fragilizado pela situação, já não confia que delatores “pegos” na mentira terão seus benefícios cancelados, é visto por todos como um Dom Quixote, solitário, guiado pela ilusão de rebater o que os outros já admitiram.


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