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Revista da CAASP - Edição 22---

Daí porque é essencial que a aferição da presença ou não dos requisitos de uma prisão preventiva passe ao largo do que disse ou deixou de dizer o acusado em relação ao mérito da acusação a que responde. Para efeito de restrição antecipada da liberdade, a versão do réu deve ser sempre um fator neutro. Ao contrário disso, em franca violação tanto ao direito ao silêncio quanto ao pressuposto de que ninguém está obrigado a se autoincriminar, o que se tem observado é uma relação direta entre confessar, delatar e preservar a liberdade, ainda que sob a forma de uma cautela antecipada para evitar a prisão. Assim é que, diante de tão flagrantes ilegalidades, de nada adianta argumentar que muitos investigados se tornaram delatores sem jamais terem sido presos. Ora, sabedores do que acontece com os demais investigados, enxergaram (com razão) na adesão ao “benefício” um salvo-conduto que nenhum habeas corpus preventivo conseguiria assegurar. A verdade nua e crua é que ninguém que fez delação foi preso no bojo da Operação Lava Jato, e todos os presos que fizeram delação retornaram num piscar de olhos ao lar! Outra consequência inexorável da progressão geométrica da celebração de acordos com a autodenominada “força tarefa” no âmbito da Lava-Jato está associada à máxima de que as decisões de primeiro grau são justas já que não foram reformadas pelas Cortes Superiores. Pois é certo que não. A cada delação premiada fechada desistem-se de TODOS os recursos em tramitação. Em outras palavras, o acusado inocente (senão de tudo aquilo do que é acusado, ao menos de uma parte) assimila também outro golpe, sendo provável que também fique sozinho em sua luta para combater eventuais ilegalidades. A ideia clássica de que a busca da verdade real seria o pressuposto de nosso modelo jurisdicional está sendo gradativamente substituída pela busca da verdade mais conveniente para cada um dos interessados, custe o que custar. Em uma palavra, não passa de sofismo. Com a desistência compulsória dos recursos intentados pela defesa, abre-se o caminho para a lógica de que os fins justificam os meios – já não é possível exigir da investigação e da acusação que andem nos trilhos sob pena de uma futura anulação do processo. Teses relevantíssimas sobre incompetência do juízo, usurpação de competência dos tribunais superiores, ilegalidade na interceptação telefônica ou de meios telemáticos, uso de provas obtidas por meios ilegais, enfim, arbitrariedades de toda sorte, são abandonadas a meio caminho – quedando sem julgamento revisional. É preciso questionar qual o sentido de tal descabida exigência. Afinal, se o acordo de colaboração premiada tiver sido celebrado em ambiente de respeito às garantias constitucionais e de processo penal, não restaria afetado pelo julgamento final dos recursos interpostos. A busca verdadeira da Justiça não deve nunca impor limites ao direito de defesa. Por outro lado, se o réu convertido a delator tiver feito esta opção duramente constrangido pelas circunstâncias, não é certo que lhe roubem inclusive o direito de ver reconhecida nulidade processual que o liberasse das amarras do acordo. Independentemente do quanto se fala em combater a certeza da impunidade, a disseminação descontrolada da colaboração premiada, e sobretudo a oferta de recompensas extraordinárias ao réu colaborador que equivalem a liberá-lo praticamente de qualquer consequência pelos ilícitos que admite, funciona, a meu ver, como um retrocesso em termos de certeza da impunidade. Hoje, quem está na berlinda, com receio de ser pego com a mão na botija, já se prepara de antemão para livrar-se das penas da lei anunciando o quanto antes sua colaboração. A utilização que tem sido dada por parte de algumas autoridades ao instituto tem servido para consagrar uma espécie de “seguro-delação”. Assim, a mesma certeza da impunidade antes associada à demorada tramitação do processo penal e ao modelo garantista do processo penal brasileiro renasce sobre a forma da traição dirigida, mais eficaz e rápida do que a atuação de qualquer advogado de defesa. Pobres réus inocentes! *Dora Marzo de Albuquerque Cavalcanti Cordani, advogada criminalista, foi presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) de 2003 a 2007, entidade da qual hoje é conselheira. Abril 2016 / Revista da CAASP // 39


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