Page 20

Revista da CAASP - Edição 26-

O imaginário que nós construímos é inquisitivista. Nesse ponto, nem falo mais do panóptico, em que todo mundo escuta todo mundo no Brasil, no sentido do Foucault de sociedade vigiada. No fundo, o Direito tem um papel panóptico porque acaba vigiando a tudo e a todos, exatamente o Direito como ele está sendo praticado. O papel da Constituição é construir barreiras a favor do cidadão. A Constituição só existe porque é um remédio contra maiorias. Por favor, as pessoas têm que entender isso! As pessoas dizem que a Constituição traz muitas garantias. E queriam que a Constituição trouxesse o quê? O dever de ser chicoteado? Gostaria que o senhor avaliasse as faculdades de Direito brasileiras em geral. O senhor não acha que mesmo aquelas consideradas de boa qualidade estão deixando um pouco de lado a formação mais humanista dos futuros juristas? O (jurista e escritor) Roberto Lyra Filho disse que nós precisávamos urgentemente instalar os cursos jurídicos no Brasil, porque o que temos aí é um arremedo de escolas de legalidade. Acho que a frase dele, dita há cerca de 50 anos, ainda vale. Grande parcela dos livros usados hoje nas salas de aula dos cursos jurídicos no Brasil - que são livros facilitados, simplificados, resumos etc. – deveria ter uma tarja como as das embalagens de cigarro, algo como “o uso deste material fará mal à sua saúde mental”, e na quarta capa deveria ter uma fotografia do Kiko (personagem do seriado mexicano infanto-juvenil “Chaves”) a dizer: “eu li e fiquei assim”. Nós não nos preocupamos em fazer um ensino aprofundado, somos reféns do Exame de Ordem e de concursos públicos. Quando fui a um congresso no STJ, eu disse lá que não são os tribunais, o Ministério Público, Defensoria etc. que têm que correr atrás do que se pergunta nas provas. As faculdades é que deveriam ser balizadas por aquilo que são as exigências, por exemplo, de uma magistratura democrática, de um Ministério Público democrático. O que se faz hoje? Hoje, se amoldam os alunos a uma certa cultura manualesca, de resumos de resumões, de professores que fazem vídeo no Youtube cantando o funk do ECA, de professores que repetem aos alunos uma espécie de modelo coreano ou chinês de decoreba e de supertarefas – e os alunos viram amestrados. Não se discutem questões sociais, coisas sérias, aprofundadas, e esses serão os juízes e promotores que cuidarão das nossas coisas, e que mais tarde chegarão ao Supremo e cuidarão da República. Então, nós temos que, urgentemente, instalar os cursos jurídicos para saber o que queremos do Direito brasileiro. O que nós estamos fazendo também é muita teoria política na sala de aula. Explico: os professores dizem como a situação política e econômica deve ser tratada, e o Direito vem a reboque. Eu quero uma faculdade de Direito que ensine Direito! Lamentavelmente, hoje nós temos uma espécie de “cursinhocracia” para a OAB, para concursos públicos etc., que adotam um certo padrão de treinamento e, a partir disso, as bancas acabam perguntando coisas que decorrem desse imaginário. Talvez o ensino jurídico possa ser mudado de cima para baixo, de modo que OAB – ainda bem que existe o Exame de Ordem! – e concursos tenham um grau de exigência e um tipo de temática estabelecida. Eu até já sugeri uma agência nacional reguladora de concursos públicos, de cursinhos e de OAB, e a partir disso, em cinco anos, nós teríamos um novo ensino jurídico, porque esse ensino teria que atender às demandas. O que se quer de um advogado no Brasil? O que se quer de um juiz no Brasil? A gente quer um juiz que decida conforme seus pressupostos morais e éticos? Ora, assim você está apostando nas pessoas, está apostando em coachings. LENIO STRECK | ENTREVISTA 20 REVISTA DA CAASP


Revista da CAASP - Edição 26-
To see the actual publication please follow the link above