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Revista da CAASP -Edição 16 - Final - 1

Sua teoria do crime permitido é ilustrada pela citação de figuras históricas, com especial atenção a Napoleão, frequentemente mencionado por Raskólnikov em seus raciocínios e conversações como exemplo acabado de um homem extraordinário, que, não obstante ser o responsável direto por fabulosos e sanguinolentos morticínios, não é tido como criminoso e sim como herói. No nível individual, sua teoria, aliás objeto de obscura publicação do estudante numa revista menor, permite a Raskólnikov desaguar na ideia da tolerância ao crime único: aquele que é permitido se o objetivo central é bom. Um único crime e cem boas ações! Por essas sendas vemos o romance psicológico de Dostoiévski ampliar-se para reflexões históricas, políticas e éticas de natureza atemporal. Raskólnikov é um personagem desequilibrado, que, por sua desmesurada vaidade, orgulho, egoísmo e presunção julga-se um homem extraordinário e, como tal, com direito a matar uma velha agiota, que ele considera um piolho, com vistas a roubar-lhe o dinheiro para, segundo os seus planos, ultrapassar os “primeiros passos” e seguir seus estudos para ao final tornar-se o grande homem que imagina ser e praticar as boas ações que o esperam no futuro. Na complexidade psicológica de seus personagens, Dostoiévski não deixa espaço para o maniqueísmo. Assim, o jovem Raskólnikov, afinal um frio e brutal assassino, é, ao mesmo tempo, um filho e um irmão carinhoso, e um cidadão generoso, disposto a amparar o sofrimento alheio fazendo presente a miseráveis de todo o dinheiro que possui. A São Petersburgo do Século XIX, palco de “Crime e Castigo” Abril 2015 / Revista da CAASP // 43 A teoria do crime permitido que nos apresenta Dostoiévski não é uma apologia e sim uma reflexão crítica – e de inteira atualidade. O que ele diz dos “Napoleões” de todas as épocas vale para os déspotas de hoje com ainda maior força, pois sendo contemporâneos são os únicos cujos crimes podemos combater. Igualmente é atemporal a crítica à ideia do crime único individual: “um crime e cem boas ações! ” Tivesse o crime permitido a Raskólnikov praticar as tais cem boas ações, ainda assim teria havido o assassinato imperdoável. Mas Raskólnikov não admite esse crime e jamais se declarará culpado do assassinato que praticou: qual é o crime em se matar um piolho? – ele se defenderá até o fim, insistindo na tese do crime permitido. Retomando a ideia, aliás impossível, de resumir Crime e Castigo, poderíamos agora reformular os primeiros passos da saga psicológica percorrida pelo jovem herói Raskólnikov. A premeditação do crime pouco teve a ver com o planejamento do assassinato, tarefa que ocupou pouco tempo e foi feita de forma tosca. Essa preparação prévia consistiu principalmente numa elaboração intelectual de ordem ética, baseada em falsos princípios, pela qual o jovem, julgando-se um homem extraordinário, acreditou ter o direito de matar a velha usurária.


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